Saúde mental: policiais militares cearenses reclamam de violência e assédio moral

“Eu entrei saudável na polícia, mas hoje se eu não tomar um remédio de tarja preta eu não consigo dormir. Lá dentro é tapa na cara, mordida na cabeça, cuspida na cara… Até torturado eu cheguei a ser, morderam minhas partes íntimas.” Esse é o relato de Mário (nome fictício), policial militar cearense que terá sua identidade preservada, afastado das atividades nas ruas desde 2015 para tratar de problemas psicológicos.

Desde então, ele reclama da falta de apoio da corporação para continuar seu tratamento e diz ser perseguido por seus superiores até hoje. “Depois de mais de 20 anos de prestação de serviços à PM, eu tenho medo que uma viatura encoste aqui e me leve preso”, continua. Ele diz que desde que se afastou do órgão aguarda a visita de um oficial que acompanharia seu caso, mas nunca o recebeu.

A discussão sobre a saúde mental dos policiais militares foi reacendida após o óbito de Wesley Soares, no fim de março. Ele foi morto na Bahia por colegas de profissão após dar tiros de fuzil para o alto durante um surto psicótico, de acordo com a Secretária de Segurança Pública (SSP-BA). O POVO conversou com policiais e especialistas para entender como está a saúde mental desses profissionais no Ceará.

O primeiro contato com Mário foi um processo de negociação. Em vários pontos da entrevista ele ressaltou que sua identificação na matéria resultaria em retaliações por parte da polícia, que continua seguindo uma rígida hierarquia militar, em que “um coronel não pode ser desafiado por patentes inferiores”, de acordo com ele.

O histórico de agressões, segundo o agente, começa desde o início da entrada no órgão, com os chamados “batismos”. Nesses rituais de passagem, os policiais são agredidos para “comemorar” a entrada na polícia ou ainda uma promoção de cargo. No último episódio, que o levou a se afastar da corporação, ele relata que dez colegas o espancaram.

“Eu tenho os ligamentos dos dois tornozelos rompidos, a gente é submetido ao limite. Durante o curso (de preparação para entrar no órgão), jogam comida no chão como se a gente fosse cachorro. Não há como a pessoa não passar por problemas psicológicos”, afirma o homem.

De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 11 policiais se suicidaram em 2019 no Ceará, sendo sete PMs e quatro policiais civis. O número é ainda maior em relação ao ano anterior, quando foram registradas duas mortes por suicídio.

Durante o primeiro semestre de 2020, 10 policiais foram vítimas de mortes violentas no Estado. A estatística é a terceira maior do Brasil, atrás apenas de São Paulo e do Rio de Janeiro, que registraram 28 e 27 policiais mortos, respectivamente. Pernambuco também teve o mesmo número de óbitos que o Ceará. Em 2019, nenhum caso foi registrado, conforme a publicação.

Mário, policial citado no início desta matéria, cuja identidade será preservada, disse que se salvou de ter um fim semelhante ao agente baiano. Ele considera que o tratamento psicológico, ainda que tenha ocasionado a redução do seu salário, está fazendo com que ele se recupere dos traumas que sofreu durante os anos que esteve ativo nas ruas.

“Apoio (da polícia) não tive nenhum. Se tivesse, teria uma cesta básica, consultas com psicólogo e psiquiatra… O serviço é estressante, estarrecedor e não tem apoio de ninguém. Tudo isso reflete na sua vida, mexe com o ser humano. Eu não sou um marginal, mas sou tratado como se fosse”, lamentou.

Antônio (nome fictício), outro policial que também não será identificado, pondera que o apoio psicológico oferecido pela corporação não consegue atingir os agentes que estão na rua diariamente. Ele avalia que seria essencial que houvesse uma busca ativa para identificar policiais que estão enfrentando problemas mentais. “Hoje, essa coordenadoria (que oferece auxílio psicológico) é como um pai ou mãe ausente. Você sabe que tem, mas não sente a presença, tampouco sente que pode confiar”, explica o homem.

“Existe uma espécie de sentimento de apreensão que você liga automaticamente quando entra de serviço, porque você não sabe o que vai acontecer na próxima esquina. Isso acontece diariamente e traz uma carga de ansiedade muito grande, é meio atordoante. É tanto que a maioria dos meus pesadelos remetem a uma situação de desorientação e atordoamento”, continuou o agente.

A psicóloga Rebeca Rangel, fundadora da Assessoria de Assistência Biopsicossocial (Abips) da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS), considera que a situação está melhorando nos últimos anos. Ela aponta que há uma preocupação maior do Estado em garantir bons equipamentos para os agentes e ofertar serviços de saúde mental, com atendimento de psicólogos, psiquiatras e fisioterapeutas.

Rangel reconhece, no entanto, que o déficit para esse tipo de acompanhamento é uma realidade nacional e destaca que as mudanças devem acontecer a partir de uma mudança de perspectiva de cima, por parte dos gestores da corporação. “Os profissionais precisam ser valorizados, se sentir valorizados. Acho que tem que abrir um lugar para o diálogo. Se o profissional está bem de saúde ele vai trabalhar melhor, vai produzir mais, e isso acontece em todos os ramos”, pondera.

Para a psicóloga, o problema de desvalorização dos policiais começa na sociedade civil. Ela pondera que a população só se lembra da PM quando coisas ruins acontecem e acaba não reconhecendo o trabalho executado pelos agentes diariamente. Um exemplo disso, defende, seria o atraso da vacinação dos profissionais da segurança pública contra a Covid-19.

Até esta terça-feira, 7, o Ceará e pelo menos outros quatro estados começaram a aplicar o imunizante em policiais. Desde a semana passada, o governador Camilo Santana (PT) vem se articulando para iniciar a vacinação no Estado. A ideia é vacinar os profissionais que estão atuando na linha de frente da pandemia, combatendo aglomerações e trabalhando em barreiras sanitárias, por exemplo.

Fonte: Jornal O Povo

Compartilhe com os amigos!