O adoecimento psicológico dos agentes de segurança tem atingido níveis alarmantes, com casos de suicídio batendo recordes históricos, ao passo que também aumentam os números de mortes por crimes letais, violentos e intencionais — como homicídios e latrocínios. Entre 2015 e 2025, o Ceará registrou 214 mortes de agentes de segurança. Em 2024, pela primeira vez, os números de mortes por crimes letais violentos e intencionais se aproximaram numericamente da quantidade de suicídios.
Em um levantamento exclusivo da Central de Dados O POVO+, obtido por meio da Lei de Acesso à Informação, esta reportagem explora o número crescente de mortes entre oficiais das forças de segurança no Ceará e analisa como esses dados se articulam com a realidade do resto do País.
Letais, violentos e intencionais
Quando a notícia chega, ela raramente fala de um acidente. É um golpe na alma da corporação, rasgando o véu da normalidade. As mortes de policiais, em sua maioria, não são acasos do destino, mas atos frios e calculados.
Mergulhar na natureza desses crimes é desvendar uma intenção violenta que se manifesta em percentuais alarmantes e pinta um retrato da vulnerabilidade daqueles que, mesmo sem o distintivo à mostra, são alvos marcados.
No Ceará, os dados da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp) informam que o cenário inspira uma crescente preocupação, com uma flutuação nos óbitos anuais e uma predominância de homicídios dolosos ocorrendo fora do horário de serviço.
A análise dos dados disponíveis aponta para a complexidade da vitimização policial no Estado e a necessidade de estratégias mais eficazes para proteger esses profissionais.
Conforme o levantamento, entre 2015 e 2025, o Ceará registrou 145 mortes de policiais, com oscilações marcantes que refletem contextos de violência, respostas estatais e crises sociais.
O ano de 2016 destaca-se como o mais violento na série histórica, com 30 mortes registradas — um aumento de 114% em relação a 2015. Nos anos seguintes, há tendência de redução, com uma queda de 82% entre 2016 e 2023, mas o salto que ocorre em 2024 indica que a questão ainda inspira preocupação.
A maioria dessas mortes é classificada como homicídio doloso, representando 73,8% das ocorrências. Os latrocínios, roubos seguidos de morte, correspondem aos 26,2% restantes.
Essa desproporção sugere que, geralmente, a intenção primária dos agressores é ceifar a vida do policial, e não somente o roubo de bens.
A Polícia Militar também concentrou os piores anos: em 2016, quando o Estado atingiu o ápice de 30 mortes, 83% delas foram de policiais militares.
Apesar da grande redução observada em 2019, das três mortes no total, duas foram de PMs. Já em 2024, com o aumento para 15 mortes, 12 vítimas eram policiais militares (80%).
Um dos aspectos mais alarmantes revelados pelos dados é que a vasta maioria das mortes de policiais no Ceará ocorre quando os agentes estão fora de serviço.
Do total, 84,8% das mortes aconteceram quando os policiais não estavam em serviço. Enquanto isso, 15,2% ocorreram durante o exercício da função, como em operações ou patrulhas.
Esse dado corrobora com a realidade de outros estados brasileiros e ressalta a vulnerabilidade dos policiais mesmo quando não estão em atividade oficial.
A condição de “estar fora de serviço” pode expor os policiais a riscos adicionais, como a falta de equipamentos de proteção, a ausência de apoio imediato de colegas e a menor vigilância.
No artigo Vitimização e sobrevivência policial: uma análise sobre mortes violentas de policiais militares do Distrito Federal, Eric de Sales, mestre em Políticas Públicas e Governo pela Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getúlio Vargas, apresenta um diagnóstico sobre os óbitos de policiais militares do serviço ativo da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) entre 2011 e 2020.
Sales verificou que 87,5% dos policiais que vieram a óbito por Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) nesse período estavam no gozo do seu período de folga e a maioria portava arma de fogo no momento do crime.
Para o pesquisador, o cenário é corroborado por estudos em outros estados, como Pará e Bahia, onde a arma de fogo foi o instrumento mais utilizado nas mortes de policiais.
Em 75% dos casos de mortes violentas de PMs da PMDF, as vítimas portavam suas armas de fogo, o que, segundo Sales, “se mostra preocupante, e com base em outros estudos já publicados, a estatística é semelhante em outras Unidades Federativas”.
Segundo o estudo, isso indica que portar a arma de fogo por si só não garante a sobrevivência, podendo, em muitos casos, até contribuir para a vitimização do agente.
Cabra marcado para morrer
O clássico do cinema brasileiro Cabra Marcado Para Morrer, de Eduardo Coutinho, imortalizou a figura do homem sentenciado à morte por forças maiores.
No contexto da segurança pública cearense, essa analogia se torna um doloroso espelho da realidade vivida pelos agentes policiais.
Longe da imagem do herói invulnerável e da segurança aparente do serviço, as estatísticas revelam que o maior risco de morte violenta para esses profissionais está justamente quando a farda é retirada e o turno de trabalho termina.
As ocorrências de CVLI contra policiais no Ceará concentrou-se no período da noite (18h–23h), com 44 mortes (30,3% do total), seguida pela tarde (12h–17h), com 37 mortes (25,5%). Juntas, essas duas faixas somam 81 mortes (55,8%).
Analisando a distribuição das ocorrências por meses, maio e agosto lideram o ranking, com 18 mortes cada, correspondendo a 12,4% do total no período analisado.
Enquanto isso, fevereiro e outubro registraram os menores índices, com 7 mortes cada (4,8%). Ao longo da década, os dados mensais revelam padrões sazonais: o primeiro semestre (janeiro a junho) concentrou 53,1% das mortes (77 casos), já o segundo semestre (julho a dezembro) somou 46,9% (68 mortes).
Nos dados, chama atenção a elevada mortalidade na meia-idade: 64% das vítimas tinham entre 30 e 49 anos.
Destrinchando em faixas menos amplas, os agentes entre 45 e 49 anos são a faixa etária que concentra mais casos, totalizando 18,6% das mortes. Na sequência, as idades de 35 a 39 anos (13,8%) e 30 a 34 anos (13,1%).
Por trás dos números
As circunstâncias das mortes violentas são variadas, aponta Eric de Sales, destacando que os contextos podem ir desde crimes passionais até supostas execuções sumárias. Ele menciona que, assim como no DF, o estado do Pará registra o mesmo fenômeno.
As mortes acontecem quando os policiais de folga tentam agir em crimes em andamento, sozinhos e sem suporte operacional, durante atividade de segurança privada, o chamado “bico”, ou quando reagem a tentativas de assalto.
A professora Jânia Diógenes, membro do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC), também aponta que é difícil precisar todos os fatores envolvidos nas ocorrências.
No entanto, destaca a constante ocorrência de mortes em reações a assaltos, situações em que o policial, mesmo à paisana em um ônibus ou estabelecimento comercial, decide intervir. Nessas circunstâncias de alta tensão, “ocorre tanto de matar, como também de morrer”, afirma.
O POVO+ conversou com Sócrates (nome fictício), um policial militar da ativa que atua na Região Metropolitana de Fortaleza.
Ano passado, um dos colegas de Sócrates foi assassinado em um crime com características de execução. Nada foi levado e não há sinais de luta ou qualquer tentativa de defesa por parte do policial.
"Atiraram sem chance de defesa. É uma dor que não dá pra explicar… a gente veste essa farda sabendo dos riscos, mas nunca tá preparado pra perder um companheiro desse jeito", desabafou.
Ele faz críticas ao desempenho da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) e às condições de trabalho enfrentadas pelos agentes. Para Sócrates, não basta aumentar o efetivo, é preciso oferecer melhores condições de trabalho.
"Nem cachorro quando morre é tratado como nós somos", coloca. Para ele, o tratamento dispensado aos agentes segue uma lógica punitivista, que faz com que todos os policiais sejam vistos como maus-profissionais.
"O que me parece é que o justo paga pelo pecador. Tem policiais ruins em todos os lugares, mas não quer dizer que todos mereçam esse tratamento", avalia.
"Não dá mais para naturalizar policial morto. Ele era um bom homem, e não pode ser só mais um número na estatística"
Sócrates*, policial militar
O PM relata também que a esposa do colega ainda enfrenta o luto com dificuldade. Para ele, o suporte deve ser oferecido ainda em vida, tanto para os agentes quanto para as famílias e não somente "remendos quando o servidor já morreu", nas palavras dele.
O que dizem as autoridades?
A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) informou que acompanha os casos de Fortaleza por meio da 11ª Delegacia do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil do Estado do Ceará (PCCE).
Já as ocorrências em outras cidades ficam sob a responsabilidade das delegacias da região. Conforme a pasta, o índice de resolutividade da 11ª Delegacia do DHPP é de 76,9%.
Em nota, a SSPDS e suas vinculadas — Polícia Civil e Polícia Militar do Ceará (PMCE) — reiteram que “não medem esforços para elucidar os casos, bem como identificar, localizar e prender os suspeitos das ações criminosas”.
Quanto ao uso de armas de fogo, a SSPDS afirma que os profissionais da segurança são capacitados acerca de protocolos de sobrevivência policial em situações de risco durante os períodos de folga.
A iniciativa, denominada de Instruções de Táticas Individuais (ITIs), foi instituída em 2020 pelo comando-geral da PMCE e aborda uma série de contextos, desde procedimentos ao sair de casa até no manuseio de armas de fogo e algemas.
Também sobre o uso de armas de fogo, a Guarda Municipal de Fortaleza (GMF) afirma que a incorporação dos equipamentos à corporação “faz parte de uma política de integração interoperabilidade das forças de segurança do Estado e do município”.
Segundo a Secretaria Municipal da Segurança Cidadã (Sesec), as armas que agora serão usadas por toda a GMF foram “doadas para ampliar a capacidade de emprego técnico da Guarda Municipal de Fortaleza”.
Assim, os agentes que usarão esse armamento doado deverão passar por um treinamento específico que envolva as particularidades do emprego do modelo e calibre dessas armas.
A pasta municipal garante que os agentes estarão capacitados para operar esses equipamentos com responsabilidade e segurança.
Se, por um lado, o Estado busca melhorar as condições de trabalho e o apoio psicossocial, a magnitude do desafio impõe a necessidade de aprofundar a compreensão sobre as dinâmicas criminosas que visam esses agentes.
A realidade multifacetada acaba não garantindo que o juramento de "proteger e servir" seja também uma promessa de proteção para aqueles que o fazem.
Metodologia
Este material foi elaborado a partir de um pedido realizado via Lei de Acesso à Informação (LAI), por meio do portal Ceará Transparente, pela Central de Dados O POVO+. Os dados foram fornecidos pela Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp) e referem-se às mortes de agentes de segurança pública do Ceará, ocorridas entre os anos de 2013 e 2025.
As informações foram disponibilizadas em formato aberto (.CSV), contendo os seguintes campos: data, hora, natureza da ocorrência, idade da vítima, corporação à qual pertencia e momento da morte.
A análise dos dados foi conduzida na plataforma Google Colab, utilizando a linguagem Python e bibliotecas como Pandas (para tratamento e limpeza dos dados), Plotly (para criação de visualizações interativas) e statsmodels (para decomposição de séries temporais).
Todas as etapas do processo — desde a preparação até a exploração e categorização — foram cuidadosamente documentadas para garantir que qualquer pessoa possa reproduzir os resultados, ajustar filtros ou aprofundar a investigação conforme necessário.
Fonte: O Povo